terça-feira, 30 de setembro de 2014

Asdrúbal, o "Pé Trocado"

– Como é que está o mercado?
– Ainda não está, Asdrúbal – respondeu Evandro, o operador de pregão. – A bolsa só abre daqui a um minuto.
– Ah, desculpe. É que eu fico louco pra que abra logo.
Asdrúbal fez questão de espreitar, segundo a segundo, a volta do ponteiro do relógio da sala de operações. Descarregou a impaciência enroscando e desenroscando alguns fios do cabelo, cacoete que tinha desde os tempos de criança.
Finalmente a voz metálica, e aparentemente desprovida de emoções, de Evandro emergiu da outra ponta da linha.
– Abriu, Asdrúbal, abriu.
– Abriu? Ah, que bom. E como é que abriu?
– Comprador a 1.120, vendedor a 1.140.
– Compra 20 lotes a 110.
– Eu disse 120 com 140. Se tem pagão a 20, como é que eu vou comprar a 10.
– Tá bom, Evandro. Vai a 20 – e, segundos depois: – Comprou? Comprou?
– Vinte e cinco com 35, Asdrúbal. É o mercado.
– Vai, vai a 25 – e logo quis saber: – Comprou? Comprou?
– Não. Negócios a 30. Negócios a 35. Tem pagão a 40. Comprador de 100 a 140.
– Vai a mercado, Evandro – a voz de Asdrúbal desandou, nervosa. Um observador atento nela detectaria o medo visceral que ele tinha de perder o mercado. De perder o bonde da História. Ou, não me deixando também levar pelo entusiasmo, de perder o bonde da historinha daquela prosaica manhã.
– Comprei 20 a 160 – informou o operador de pregão.
– Puxa, Evandro. – Asdrúbal acusou o golpe. – Você não disse que tinha pagão a 40.
– Pagão, Asdrúbal. Comprador. Vendedor só a 160. E agora só a 70. Sessenta e cinco com 70. É esse o mercado. Tem muito comprador na roda. O mercado vai subir.
Foi como se tivesse oferecido um copo de uísque a um alcoólatra.
– Compra 50 a 70. Não! Compra a mercado. Compra 50 a mercado. Compra 80, pra inteirar 100 lotes.
Seguiram-se alguns segundos, de tensa expectativa.
– Comprei 50 a 175 e mais 30 a 180.- Certo. Que alívio, amigão. Mas me dá o mercado.
– Asdrúbal levantou-se da cadeira. – Como é que está o mercado? – insistiu.
– Vendedor a 60. Vendedor de lote a 160. Negócios a 1.160. É esse o mercado.
– Mas você não disse… Evandro, você não disse que o mercado era comprador?
– Era, Asdrúbal, mas não é mais. Tem vendedor a 160, vendedor a 150. Tem um vendedor grande na roda. Negócios a 40, vendedor a 130, vendedor a 120, negócios a 110. Tá saindo a 1.100. O mercado vai desabar.
– Caramba, Evandro, eu comprei a…, deixe-me ver, comprei 20 a 60, 50 a 75 e 30 a 80. Estou comprado em 100 a 1.173 e meio. Como é que está o mercado?
– Vendedor de 500 lotes a 1.080. Eu não quero parecer alarmista. Mas acho que está acontecendo um crash.
– Vende 200 a 1.080.
– Mas, Asdrúbal, você só comprou 100 lotes.
– Eu sei, Evandro, quero vender em dobro. Quero ficar short em 100. Surfar na onda desse crash. Como é que está agora?
– Vendedor a 060. Mil e sessenta.
– Não disse, cara. Você está perdendo o mercado. Vai nos 60. Vende 200 a 060.
– Vendedor a 55.
– Vai a mercado, Evandro, vende 200 a mercado. Não! Vende 300. Vende 300 lotes a mercado.
O operador de pregão agiu rápido.
– Vendeu, Asdrúbal, vendeu tudo de uma tacada só. Vendeu 300 a 10.
– Trezentos a mil cento e dez? Parabéns, Vando, parabéns, meu chapa – quando ficava satisfeito com o operador, Asdrúbal o agraciava com o diminutivo carinhoso. – Legal, cara, parabéns – repetiu-se como um papagaio.
– Não, Asdrúbal. Mil e dez. E não mil cento e dez.
– Mas como, mil e dez? Tudo bem, Evandro. Entendi. O mercado está sofrendo um colapso. Ainda bem que estou short. Como é que ficou agora? Mas não faz suspense. Diz logo o mercado.
– Virou de novo. Tem comprador a 1.030. Comprador a 1.040. Pagão de lote a 1.050. Asdrúbal, tem um comprador gigante a 1.100. Acho que estamos no início de um bull market.
Naquela manhã, que de prosaica transformou-se em trágica, o mercado fez um novo high, a 1.190. E continuou subindo. Asdrúbal que, como vimos, acompanhara o ziguezague operando em zaguezigue teve de estopar sua posição. Era afobado, mas não louco.
E você, caro trader leitor, quantos Asdrúbals já conheceu? Cá entre nós, quantas vezes você, sim, você mesmo, não se faça de desentendido, se comportou dessa maneira, correndo atrás do mercado, com medo de perdê-lo. Quantas vezes comprou na hora de vender, vendeu na de comprar. Ficou long no overbought. E short no oversold. Foi urso em plena glória do touro. E touro no apogeu do urso. Fez o high do mercado, comprando. Fez o low, vendendo.
Em meus 37 anos de trader, confesso humildemente, isso aconteceu comigo inúmeras vezes. Cheguei a pensar que o mercado inteiro prestava atenção naquilo que eu fazia, para fazer exatamente o contrário. E, nessas oportunidades, ao voltar para casa à noite, sentia-me o verme dos vermes, o mais principiante dos aprendizes, o otário da multidão.
Por Ivan Sant’Anna
Comentário Scalper Trader:
“Ao invés de se preocupar em tentar adivinhar o futuro, se concentre em enxergar o óbvio e em reagir ao fluxo do mercado no momento especialmente quando este estiver for contra sua posição. Este é o grande passo para parar de perder. Aceitar a realidade. Quem se ilude não sobrevive no mercado.”

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Controle suas emoções: Use Stops!

Os traders internacionais de futuros, e de derivativos em geral, têm a mania de citar adágios. Para cada situação de mercado, há sempre alguém que surge com uma máxima. Entre as muitas citações das quais os profissionais se valem a todo momento, a que, em minha opinião, encerra mais sabedoria é: “Cut your losses, let your profits run”. Numa tradução livre, algo como: “Livre-se de seus prejuízos, mantenha suas posições lucrativas”. Melhor dizendo, se o mercado corre no sentido contrário ao de sua posição, pule fora. Mas, se vai na mesma direção, se abrace ao seu trade, grude-se nele como um marisco num rochedo.
Pois é, prezado trader leitor, seja touro na alta e urso na baixa. Só que o dictum, embora fácil de se recitar, é difícil de se cumprir. Exige muita disciplina.
Indo por partes, imaginemos um trader decidindo uma posição totalmente ao acaso, de maneira displicente, jogando uma moedinha para cima. Mesmo assim ele, é obvio, terá 50% de chances de acertar a tendência. Isso mesmo. Cinqüenta por cento. Quer tentar? Escolha você o mercado e jogue a moeda. Se der cara, você compra, vira touro. Se der coroa, vende, torna-se um urso. Como o mercado vai ter de se mover para algum lugar, apesar da atitude aparentemente pouco séria, suas chances de ganhar serão rigorosamente iguais às de perder.
É verdade que você irá pagar corretagens, emolumentos e, muito provavelmente, terá seu preço onerado por slippage(nome que se dá ao spread entre os preços oferecidos pelos compradores e os apregoados pelos vendedores), pois geralmente se compra um pouco mais caro e se vende um pouco mais barato do que o preço que se vê na hora da decisão.
Mesmo assim o ônus é coisa pouca. E, afinal de contas, você não é operador de moedinhas. Isso foi só um exemplo. Você entende de mercado. É sua profissão. E esse conhecimento é, no mínimo, suficiente para que possa superar a desvantagem dessas taxas e spreads.
Então, se a coisa é tão simples, por que será que às vezes torna-se tão difícil ganhar dinheiro no mercado? Se apenas na base da sorte já daria para empatar. Por que será que se precisa de estudo, experiência, perseverança, de dedicação em tempo integral?
Simples. Porque o próprio mercado nos induz ao erro. Dá sinais de que vai subir, e cai. Finge que sobe e leva um tombo. Pois ele não é feito apenas de conhecimento. Não se trata de uma ciência exata. É muito mais uma arte. Seu comportamento é regulado por emoções: ganância, medo, inveja, tentação, precipitação… Dominar esses sentimentos é o segredo de um trader bem sucedido.
Existe um outro ditado que, com outras palavras, tem o mesmo significado. Também mostra que controlar as emoções é o segredo do ofício. Refiro-me a “Don’t fall in love with your position” (“não se apaixone por sua posição”). Pois boa parte dos operadores, ao assumir um trade, se enamora dele. Os touros, via de regra, tornam-se vidrados na alta. Os ursos, na baixa. E teimosamente se mantêm na arena mesmo quando as chances de vitória só mínimas, para não dizer nenhumas.
Com os chifres quebrados, os músculos dilacerados, o touro fica esperando o urso fugir. Com as vísceras à mostra, devido a uma chifrada bem dada pelo inimigo, o urso, embora cambaleante, recusa-se a cair. Prefere sofrer seu martírio de pé. Com o perdão pelas metáforas sanguinolentas, é mais ou menos isso que acontece com a gente quando não usastop. Quando não se pula fora de uma posição que correu para o lado errado.
Sim. Nenhuma dessas desgraças ocorrerá se o trader usar sempre um stop. Se obedecer aos ditames dos dois adágios acima. Pulando fora ao primeiro prejuízo. Não se apaixonando por uma posição perdedora. E eis que me ocorre um terceiro ditado, este brasileiríssimo, e igualmente sábio: “o primeiro prejuízo é o menor”.
Batendo sempre na mesma tecla, imaginemos um método audaz (e não muito imaginoso) para se atuar no mercado. Algo como: toda vez que determinado futuro fizer um novo low (do dia, da semana, do mês, do ano, ou de todos os tempos, não importa), fica-se short. Se fizer um novo high, fica-se long. Põe-se um stop logo acima do preço de venda (no caso do urso) ou logo abaixo do preço de compra (no do touro). Podemos imediatamente inferir que muito não se irá perder. Pois ostop é curtinho, quase cirúrgico.
Mas se o mercado disparar na direção certa, iniciando um longo movimento de alta ou de baixa, que sempre começa com um novo high, ou novo low, essa operação, baseada em técnica tão simples, poderá ser o trade de sua vida. Já imaginou quem comprou ações da Microsoft nos primeiros anos da empresa, num dia em que a ação fez seu primeiro highsignificativo? Durante anos e anos esse felizardo pôde surfar na onda de novos e sucessivos highs.
Erro tão imperdoável quanto o de não ter stop é liquidar a posição prematuramente, por medo. Medo de perder o que se ganhou. Desobedecendo a segunda parte do ditado: …let your profits run. E obedecendo a um outro dictum, tão errado quanto estranho: “Lucro nunca dá prejuízo a ninguém”. Se tivesse pensado assim, Bill Gates poderia ter posto à venda sua empresa quando ganhou o primeiro bilhão.
Juntando as duas coisas, ausência de stop, e falta de perseverança no lucro, temos o exemplar típico do trader “pé trocado”, ou seja, aquele que é corajoso no prejuízo e covarde no lucro. Segura uma posição perdedora por meses a fio. Sai fora de trade vencedor no primeiro ajuste positivo.
Para não incorrer nesses erros, sugiro a você, prezado trader, que mande fazer uma plaquinha com os dizeres “Cut your losses, let your profits run” (nunca é demais repetir). Coloque-a bem à sua frente na mesa de trabalho. E nunca deixe de obedecer ao ditado, não importa o quão desgastante isso possa ser (entrar e sair, entrar e sair, até acertar).
Esse conceito de stops é tão importante que, hoje em dia, rege não só o mercado como o mundo de negócios em geral.
Há algum tempo, em entrevista à revista Veja, o brasileiro Carlos Ghosn, presidente da Nissan, considerado por muitos como o mais brilhante executivo do mundo, revelou como transformara um prejuízo de US$5,5 bilhões (balanço anual encerrado em maio de 2000) num lucro de US$2,7 bilhões (maio de 2001).
- Fechei as unidades deficitárias e mantive as produtivas – explicou singelamente.
Ou seja, Ghosn (agora celebrado como um ícone no Japão, mesmo tendo demitido 21.000 empregados da empresa que dirige) simplesmente livrou-se dos prejuízos e manteve as posições lucrativas. Soube fazer stops. E, embora ele não tenha dito isso, tenho certeza de que em sua mesa há a tal plaquinha: “Cut your losses…”
Por Ivan Sant’Anna
Comentário Scalper Trader:
” Só os Traders Profissionais cortam seus prejuízos, sem medo ou hesitações quando o mercado mostra que a operação está errada. E só os Traders Profissionais zeram sua posição, para realizar os lucros,  de forma organizada e sistemática quando o mercado vai na direção do seu trade. Como comentado no artigo “Armadilhas”: Não predefinir o seu risco, não corte suas perdas, ou não realizar lucros, são três mais comuns e geralmente os mais caros erros que o trader pode fazer. Apenas os melhores eliminaram esses erros. ] “

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Um dia no pregão da BMF

Para a BM&F, 16 de abril de 2007 não foi um dia qualquer. Muito ao contrário. Nessa segunda-feira de outono, o pregão da Bolsa registrou o contrato de nº 2.000.000.000. Aproximadamente um mês antes, a Resenha BM&F me convidou para escrever um ensaio sobre esse evento tão especial.
Na ocasião do convite, ainda não era possível se prever com exatidão quando o contrato dois bilhões iria ser fechado. Mas, à medida em que o tempo foi passando, estimou-se que o “dois bi” cairia ou na sexta-feira 13 de abril ou na segunda, 16. Numa hipótese mais remota, na terça, 17.
Para alegria dos supersticiosos, logo o ritmo crescente do volume de negócios desfez a possibilidade da sexta-feira 13 e limitou as opções para segunda ou terça. Finalmente, na tarde do dia 13 se pôde estimar que o trade “dois bilhões” seria fechado entre as 11 e as 14 horas da segunda-feira 16.
Viajei para São Paulo no domingo, 15 de abril. Como os pregões viva-voz abrem às 10 da manhã, minha idéia era chegar na Bolsa às oito e meia (hora na qual são abertas as portas do recinto de negociações) de segunda-feira, para estar lá quando começassem a surgir os operadores e auxiliares de pregão. Eu queria ser o primeiro a chegar.
A segunda-feira amanheceu nublada, com temperatura de 20º. Acordei cedo, tomei café-da-manhã no hotel, peguei um táxi para a Bolsa e entrei no pregão exatamente às 8 e meia. Fui surpreendido ao ver que quase uma centena de profissionais entrou junto comigo.
Carlos Alberto Ribeiro Silva, 33 anos, casado, um filho, auxiliar de pregão, já estava na Bolsa desde às 06h40m. Ocupou o primeiro lugar na fila junto à porta de entrada. E lá ficou esperando a abertura. Não a abertura do pregão, como seria de se supor, mas a abertura das portas. A razão pela qual madrugou foi a de guardar lugar no degrau mais baixo (e mais ao centro) do pit (roda com degraus decrescentes e concêntricos) de dólar futuro para um scalper (scalpers, para os não íntimos, são os floor traders que trabalham por conta própria).
Cinco minutos depois de eu ter entrado no pregão, os melhores lugares no centro da roda de dólar já estavam ocupados. Isso, faltando hora e meia para a abertura. Alguns auxiliares penduravam, com barbantes, garrafas d’água nos corrimãos do pit, mostrando que a vigília seria longa.
No saguão de negociações (trading floor), existem três pits maiores nos quais são negociados dólar futuro, DI (taxas de juro) e Ibovespa. Em diversos pits menores, negocia-se dólar para pronta entrega (dólar pronto), café, boi gordo e outros produtos. Atualmente o pregão mais ativo é o de dólar e, em 16 de abril, o dólar mais negociado era o vencimento maio de 2007, justamente no pit onde Carlos Alberto se instalou às 08h30m, após quase duas horas de espera lá fora.
O primeiro operador a chegar no pregão foi Eduardo Andrade Santana, que todos ali conhecem como Salsicha. Eduardo, 41 anos, é casado e tem um filho. Mora em São Bernardo do Campo, de onde saiu pouco antes das sete horas. Chegou na BM&F às 07h40m. Salsicha (espero que ele permita, também a mim, a intimidade) opera dólar pronto para a corretora Renascença.
Enquanto eu aguardava a abertura do viva-voz, fiquei conversando com os profissionais, fazendo meu dever de casa para esta matéria. Aprendi que os operadores usam camisa social com gravata (sem paletó). Os auxiliares, camisa social, gravata e um colete vermelho. Já os que trabalham no mercado de dólar para pronta entrega (tanto operadores como auxiliares) usam coletes verdes. Trata-se de um produto novo (o dólar pronto) e a BM&F quer fazê-lo sobressair-se entre tantos outros ativos vestindo seus protagonistas de maneira diferente.
Em todos os pits, os operadores que trabalham para corretoras usam crachás amarelos. Os scalpers, crachás azuis.
Quando os mercados eletrônicos abriram, às 9 horas, os degraus mais baixos dos pits importantes do pregão viva-voz já estavam ocupados por auxiliares, guardando para seu traders as posições físicas mais estratégicas.
Pouco antes das 10 da manhã o enorme mostrador de um relógio luminoso digital mostrou a contagem regressiva dos segundos que faltavam para a abertura.
Cinco, quatro, três, dois, um, zero: os negócios que, até então, se faziam por computadores, passaram a ser fechados literalmente no grito, numa liturgia que existe desde o século XIII, quando operadores começaram a negociar commodities dessa maneira tão democrática quanto espalhafatosa na bolsa do condado de Bruges, hoje parte da Bélgica.
O pregão viva-voz de uma bolsa de público pregão era e continua sendo o tumulto mais organizado que existe na face da terra. Ao testemunhar sua abertura mais uma vez, lembrei-me de um texto que escrevi para meu livro Os Mercadores da Noite, lançado pela própria BM&F em 1996.
“Exatamente nessa hora, quando soava a campainha, todos pareciam enlouquecer. Aquelas mesmas pessoas, minutos antes comentando futebol, passavam a gritar e a gesticular furiosamente uns com os outros. Nenhum leigo, ali presente como visitante, compreendia como os operadores se faziam entender em meio a tais tumulto e gritaria.”
Quando redigi o texto acima, eu retratava o pregão da CBOT (Chicago Board of Trade), no qual negociei durante muitos anos. Agora, em abril de 2007, a cena e a liturgia são praticamente as mesmas no recinto de negociação da BM&F.
O operador faz a anotação da compra ou da venda e a entrega para um auxiliar. Cabe ao auxiliar do vendedor preencher o boleto e procurar o auxiliar do comprador. Este, depois de conferir as informações, rubrica o papelucho, sacramentando o negócio. O boleto, agora assinado pelas duas partes, é lançado em um escaninho que os profissionais do pregão da BM&F conhecem como tobogã, cuja bocarra engole, em média, um milhão e meio de contratos todos os dias.
Por coincidência, nesse dia em que estive no pregão, para testemunhar o contrato “dois bi”, o Ibovespa alcançou seu maior valor em todos os tempos (até então, bem entendido, pois a marca já foi superada), o risco Brasil atingiu o menor nível da história e o dólar só não bateu um recorde de baixa de seis anos porque o Banco Central interveio, comprando a moeda norte-americana no mercado futuro (através de contratos de swap).
Sete mil, setecentos e quarenta e cinco dias antes, quando a BM&F abriu suas portas pela primeira vez, ninguém jamais poderia imaginar tal cenário. Era uma época de inflação, de choques heterodoxos, uma era em que o dólar subia sempre, restando aos traders brasileiros estimar a velocidade da alta.
A BM&F não foi apenas testemunha dessa mudança. Foi um dos seus principais instrumentos, uma de suas pedras angulares.
No dia do “dois bilhões”, Devanir Aparecido Rezende (o Deva), casado, duas filhas (31 e 26 anos) era o operador mais antigo no recinto de negociações. Em sua bagagem, em seus 36 anos de estrada, foi auxiliar e operador na Bovespa, negociou boi e ouro na Bolsa de Mercadorias de São Paulo (Bolsinha) e finalmente veio para a BM&F, onde está há 17 anos. Seu crachá mostra que ele trabalha para o Santander.
Marcos Tadeu, o Marcão, tem 35 anos de idade, um a menos que o Deva tem de pregão. Marcos fez o sinal da cruz quando entrou no recinto, exatamente às 09h21m. Eu perguntei por quê?
─ Para ter um bom dia de negociação.
Marcão opera para o UBS Pactual.
José Reinaldo Oliveira é um trader que consegue pensar e agir em dois planos. Enquanto conversa comigo sobre meus livros e sobre meus artigos na Resenha BM&F, vai passando os dados do pregão de Ibovespa para a mesa da Indusval.
─ Comprador a zero, zero. Vendedor a dez. Negócios a dez. Comprador a dez ─ ele recita, quase que maquinalmente, uma ladainha que me é tão familiar.
Antes de descer os degraus da roda, Marvio Sandes Cardoso, 35 anos, operador de Ibovespa e DI, faz alongamento e exercício de vibração das cordas vocais. José Roberto Tavares Longui, 37, alonga as pernas apoiando os pés no corrimão do pit.
Quem acha que controlador de vôo é uma profissão estressante devia fazer uma visita ao pregão da BM&F. Tal como nas torres dos aeroportos e centros de controle do espaço aéreo, nos pits de dólar, Ibovespa e DI momentos de calmaria se alternam com instantes da mais pura loucura. Só que, na bolsa, a tensão é muito maior. Nas horas mais críticas, os floor traders se parecem com jogadores de futebol na grande área, durante a cobrança de um escanteio no ultimo minuto do segundo tempo de um jogo empatado.
Como simples espectador do pregão, sem nenhum interesse no subir e descer das cotações, pude observar os detalhes. E que detalhes. No pit de DI, por exemplo, dois traders se digladiavam. Com comportamentos totalmente distintos. Como se a profissão de um nada tivesse a ver com a do outro. Um deles parecia um aristocrata comprando obras de arte num leilão da Sotheby’s, em Londres. Seu contendor se assemelhava a um político italiano, discursando na Camera dei Deputati, em Roma..
─ Vendo a quarenta ─ rugiu o “italiano”.
─ São meus ─ balbuciou o “fidalgo”, reforçando as palavras com um movimento quase imperceptível dos dedos da mão direita.
Questão de estilo.
O negócio 2.000.000.000 surgiu às 12h16m. Foi anunciado logo depois pelo diretor geral da BM&F, Edemir Pinto, e pelo diretor de pregão, José Carlos Branco. O anúncio foi seguido de uma chuva de papéis prateados que desceu do teto do recinto. A operação envolveu 1.000 contratos de Ibovespa, vencimento abril de 2007, a 48.720. Comprador: Amauri Simões de Almeida Junior, 40 anos, casado, um filho. Vendedor: Fernando Jorge Carneiro Filho, 38 anos, casado, duas filhas. Amauri e Fernando, é claro, não faziam a menor idéia de estar negociando o contrato dois bilhões.
Fernando acordou às sete da manhã, chegou na Bolsa às 08h30m para ler o jornal. Tomou café na lanchonete do térreo. Ao meio-dia e quinze fez uma oferta firme de três minutos dos tais mil contratos, oferta essa apregoada pelo fiscal do pit. Amauri, que também acordou às sete, chegou na BM&F às 09h30m. Sua mulher, Ana, levou-o de carro para o trabalho. Amauri estava comprando o lote que viesse, quando surgiu o “firme” de Fernando. Fechou na hora.
Amauri opera para a corretora Ágora. Fernando, para o Banco Fator.
Até o momento em que o Edemir anunciou o negócio, eu era, como já disse, apenas um frio observador dos acontecimentos. Mas, ao saber que o Fator tinha sido um dos intervenientes da operação 2.000.000.000, foi impossível não me emocionar.
Ano de 1967: acreditem ou não, eu já estava no mercado havia quase uma década. Foi quando o grupo do qual eu fazia parte decidiu fundar uma corretora. Coube a mim escolher o nome: Fator. Coube a mim ser o operador de pregão.
Na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, onde eu, extremamente nervoso, estreei no outono de 1967, tinha apenas um pit, que os jornais da época chamavam de corbeille e que nós, traders de pregão, chamávamos de roda mesmo.
Antes da estréia como floor trader no Rio, eu havia operado em mesas de câmbio e de títulos de renda fixa, tendo começado em Belo Horizonte no longínquo ano de 1958. Juscelino Kubitschek era o presidente, o Brasil foi campeão do mundo pela primeira vez e a indústria automobilística nacional ensaiava seus passos.
Voltando aos anos 1960, mais tarde a corbeille carioca se desfez e deu lugar a um amplo recinto com postos de negociação, onde operei durante o grande bull market de 1971. Continuei seguindo minha estrada, cujo percurso passou por mesas de open market e pelos mercados futuros de Chicago e Nova York. “Treidei” ao longo de 37 anos, até abandonar os números pelas letras em abril de 1995.
Em 1977 vendi minha parte na Fator para um grupo carioca. A este, sucederam-se outros grupos e a empresa que fundei em 1967 tornou-se um banco paulista. Que vendeu o lote dois bilhões.
Minha filha costuma dizer que eu não conheço História.
─ Você “viu” a História acontecer ─ ela argumenta.
Às vezes, como sucedeu no dia  16 de abril deste ano, a História me pega de surpresa. Fui fazer um ensaio jornalístico e acabei sendo envolvido por ele.
Por Ivan Sant’Anna
Comentário Scalper Trader:
” O pregão viva-voz acabou… mas seus ensinamentos continuam prevalecendo… a maioria dos Operadores Autônomos e dos Operadores Especiais (Scalpers) conheciam os outros operadores, por qual corretora eles operam e para quem eles operam… e essa informação era muito relevante na hora de tomada de decisão…Todos sabiam que tal operador opera pelo Bradesco e ficava ligado com o Tesoureiro… Todos sabiam que tal operador fica na Capital e ficava ligado com um estrangeiro… no Eletrônico os nomes mudaram, as pessoas mudaram mas ainda existem os ‘Marcões’ que operam pelo Pactual, os ‘Fernandos’ pela Agora… a Leitura do Fluxo de Ordens e a Leitura dos Players (Tape Reading) ainda é e sempre será muito presente e importante… habilidade esta que poucos traders conhecem ou desenvolvem…”

https://www.youtube.com/watch?v=Sinf531-L-s